Aconteceu nas pistas de testes…
Por Edu Pincigher
Lá no meu início de carreira, atuei por alguns anos na revista Quatro Rodas, onde compunha a equipe da “área técnica”. Eram jornalistas que testavam os carros na pista de testes e escreviam as reportagens. Tive sorte. Logo que ingressei na revista, como um jovem recém-formado da faculdade de Jornalismo, a vaga que surgiu foi nessa equipe que testava os carros. E era o que eu queria.
Há histórias curiosas nesse período. Tudo estava em ebulição. Eu começava a testar alguns carros que passavam de 200 km/h, o que era emocionante por si só – besteira dizer que você não se empolga na hora de medir os carros mais velozes. Claro que era diferente! Nesse início dos anos 90, além dessa “empolgação”, estavam chegando várias marcas e novos modelos ao país, além de tecnologias que estreavam nas fabricantes nacionais, como injeção eletrônica single-point ou multipoint, cabeçotes com 4 válvulas por cilindro, freios com ABS. E eu lá, acelerando na pista e vivenciando coisas, às vezes, engraçadas.
O mistério da máxima do Fiat Tempra
Essa história inaugural, que é totalmente verídica, aconteceu em 1993. Foi o dia que um outro repórter, que também era “testador de carros” se mijou todo em um teste de velocidade máxima do Fiat Tempra 16V.
Uma grande preocupação na área de testes era a possível discrepância de habilidade entre os pilotos. Fazíamos aferições de tempos em tempos para verificar essa possível diferença e, se houvesse, trabalhávamos para acertar o pé dos mais lentos.
Aproveito para explicar uma dúvida que rolava desde aquela época: “por que os números da revista eram piores do que os das fábricas?”. Eram dois motivos. As fabricantes instaladas no Brasil mediam seus carros ao nível do mar, onde a pressão atmosférica é maior e, por isso, os motores proporcionavam melhor desempenho. Quatro Rodas fazia o teste em uma pista que estava a 600 metros de altitude.
Além disso, o padrão da revista era fazer o teste de aceleração aliviando o pé do pedal nas trocas de marchas – como qualquer motorista faz no uso cotidiano. Em um carro que fizesse 0 a 100 km/h em 10 segundos, por exemplo, você ganharia cerca de seis ou sete décimos se fizesse o teste de pé trancado – sem tirá-lo do acelerador. Já as fabricantes esqueciam o pé do piloto lá no assoalho…
Eis que a Fiat lança a versão 16V do Fiat Tempra, em meados de 1993. O carro foi pra capa da revista e estampou a velocidade máxima na chamada: 198 km/h. Logo no mês seguinte, a reunião de pauta sugeriu reprise, mas desta vez em um comparativo com o Chevrolet Omega CD. Eram os dois sedãs nacionais mais sofisticados, luxuosos e velozes da época. Nós nem devolvemos o Tempra à Fiat e ficamos com ele até o mês seguinte.
Fui escalado para fazer o comparativo. Àquela época, a Quatro Rodas realizava os testes de velocidade máxima na pista de taxiamento do aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP). Ela tinha cerca de 3,4 km e era mais do que suficiente para aferir a máxima dos carros.
Fui pra pista. Chegava ao final da reta, uns 150 metros antes da cabeceira, e você freava. Só que não vinha nada além de 192 km/h no Tempra. Lembrando: era o mesmo Tempra que fizera 198 km/h no mês anterior. Avisei o colega que havia testado no mês anterior, ele veio me encontrar, repetiu o teste e fez o mesmo número que eu. Fizemos um check-up no carro. Nada. Concluímos que tinha havido um erro de aferição no aparelho. Na dúvida, dias depois, foi toda a equipe pra pista a fim de fazer um tira-teima. E todo mundo bateu os mesmos 192 km/h.
Só que um dos testadores, um jovem que acabara de entrar na equipe, resolve abusar. Sei lá, o moço quis dar “demonstração de perícia”, quando o que importava era o oposto, ou seja, a isonomia nos resultados de todos os jornalistas-testadores. E o rapaz vai e freia lá dentro, mas lá dentro mesmo, uns 80 metros à frente do que regulamentávamos como padrão. Quase na cabeceira da pista. Ali, tio, ou você sobe no pedal de freio… ou puxa o manche e decola…
Quando ele para o carro, seu semblante tem o olhar orgulhoso de quem “bateu” os números dos amiguinhos. Mas havia algo errado. Ele entrega a fitinha do computador que apontava o “excepcional” resultado de 192,4 km/h… e sai correndo. Entra no saguão do aeroporto e desaparece. Alguém ainda brincou: “ele deve ter se cag… todo pra chegar nesse número”. Não era exatamente isso. Mas quase. O rapaz volta com as calças molhadas, com aquela indesejável mancha bem na região da virilha. É. Fez 0,4 km/h a mais. Mas se mijou inteiro.
Eu voltei pra São Paulo guiando o Omega CD, lógico. Ele voltou de Tempra.
O Escort Cosworth que dava tontura
Em meio às novidades surgidas na primeira metade dos anos 90, com a reabertura dos importados, havia um segmento de carros que me despertava enorme atenção à época: os modelos de rua que serviam para homologar representantes do Campeonato Mundial de Rali. Eram o Subaru Impreza 555 (só seriam nomeados como WRX em 1995 ou 1996), o Toyota Celica GT-Four e… o Ford Escort RS Cosworth.
Três unidades do Cosworth foram importadas ao Brasil para serem usadas pela própria marca como pace car da Fórmula Ford. O carro tinha motor 2 litros turbo com 220 cv, tração integral e relações bem curtas de câmbio e diferencial, como convém a modelos que competem nessa categoria. Você dificilmente passará dos 200 km/h numa prova de rali. O importante era chegar rápido a essa velocidade. E ele chegava.
A maior característica desse carro era a asa dupla na traseira, mostrando que o importante era o downforce (forçar aerodinamicamente a traseira para baixo, ganhando em aderência), e não a velocidade máxima.
Fazia 0 a 100 km/h em 6s4, em uma época que a nossa referência de esportivo da marca, o Escort XR3, mal conseguia baixar de 10h50. E mesmo um vitaminado Honda Civic VTi cumpria a prova em cerca de 7s5. Não havia um carro médio tão bruto como aquele Escort, principalmente porque a tração nas quatro rodas evitava que ele arrancasse girando os pneus em falso. Lembro de ter testado várias rotações para arrancar, até conseguir os melhores tempos no 0 a 100 km/h. E foi por ali, mesmo, na casa dos 6 segundos.
Era uma estupidez o que aquele Escort fazia de curvas, mérito da tração integral e da suspensão independente nas quatro rodas. Era o carro que eu gostaria de ter para fazer aquelas provas de subidas de montanha, sabe? O Cosworth se destacava pelo 3G. Não, nada de conectividade. Nem existia nada parecido à época. Mas porque ele arrancava com 1g de aceleração, freava com mais um 1g e tinha também 1g de aceleração lateral…
No dia de fazer o teste de velocidade máxima, em Viracopos, o @ricardodilser estava me auxiliando. Nós nos ajudávamos. Quando ele ia acelerar os carros do teste dele, eu acertava o cone de referência para frenagem. E vice e versa. O Cosworth nem era tão veloz. Fazia cerca de 220 km/h.
Mas o Rica errou a posição do cone de frenagem no final da pista. Era pra estar 200 metros de onde terminava o asfalto. Ele pôs o cone nos 100 metros. Eu vinha a 220 km/h e o cone não chegava. E não chegava. Quando chegou… acabou a pista. Levantei do banco pra frear. E a desaceleração (sem dar fading) foi tão poderosa que deu até tontura. O carro parou. Aliás, parou fácil, bem distante ainda do final do asfalto.
(Aqui eu me concedo um aparte, que está totalmente relacionado a esse tema: ao longo da minha carreira, eu entrevistei cerca de dez ou doze pilotos de F1 em pautas variadas. A todos fiz a mesma pergunta. E, de todos, recebi a mesma resposta: “o que mais te impressionou quando você andou de F1 pela primeira vez?” Ayrton, Nelson, Émerson, Rubinho, Gugelmin, Tarso, Christian, Raul… todos disseram: os freios. Nada é igual a um F1 como a potência do sistema de freios. Os carros de competição não precisam ter a mesma durabilidade do conjunto discos, pastilhas, cilindros de roda e outros itens como os de rua. Por isso você tem freios tão mais eficientes nos carros de pista. E não só nos monopostos de F1, mas também nos de rali, tal qual era esse Cosworth.)
A tática era a seguinte: o final da pista de Viracopos dava naquele xadrez característico das cabeceiras de pistas de aeroportos – você tinha que evitar esse xadrez com o carro de teste por razões óbvias. Ou você conseguia frear em linha reta ou aliviava o pé do freio e contornava a curva que levava à pista principal. Como a pista era beeeeeeem larga, você vinha bem aberto no teste de máxima e tangenciava a curva de final de reta caso desse algum problema nos freios – dava pra fazer a 130 ou 140 km/h.
Com o Escort, quando finalmente vi o cone, fiz tanta força pra frear, mas tanta, que me deu tontura em razão da força G de desaceleração e até deixei o motor morrer, pois o carro parou completamente com a quinta marcha engatada. E ainda restavam 20-25 metros de pista.