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Mercado Internacional – A prisão de Carlos Ghosn no Japão abala o mercado automotivo.

Este brasileiro nascido em Rondônia, em 1954 (64 anos) com sangue libanês (pela parte do pai) e nigeriano (pelo lado da mãe) mostrou desde muito jovem ser um cidadão do Mundo. Com dois anos decidiu beber água de um riacho, ficou gravemente doente e depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro, acabou por ir com a mãe para o Líbano, onde começou a sua formação acadêmica em escolas francesas. O salto para Paris se deu pouco depois, onde se formou como engenheiro em 1974 na Escola Politécnica e na “Ecole des Mines de Paris” em 1978.

 

Cumprida a formação acadêmica, Carlos Ghosn encontrou refúgio na Michelin, onde esteve 18 anos, passando por várias fábricas da gigante francês. Subiu para diretor de fábrica em 1981 e em 1984 foi nomeado responsável pelo departamento de pesquisa e desenvolvimento da divisão de pneus industriais.

 

Quando completou 30 anos, a Michelin o destacou para a América Latina como COO das operações da Michelin naquela área, instalando-se no Rio de Janeiro e reportando, diretamente, a François Michelin. A tarefa não era fácil: fazer daquela zona uma operação rentável, algo que não acontecia há vários anos. Era a oportunidade para o gênio sair da lâmpada: reuniu uma equipe que cruzava várias nacionalidades e culturas, lançando uma das suas frases célebres. “Aprendemos na diversidade, mas somos confortados pela comunidade.” Dois anos depois, a Michelin voltava aos lucros na América do Sul.

 

A recompensa foi ser nomeado COO da Michelin North America, passando a viver na Califórnia, passando a CEO um ano depois, em 1990. Foi sua obra a restruturação da operação e a compra da Uniroyal e da BF Goodrich, marcas que ainda hoje fazem parte do portfólio da Michelin.

 

A fama de Carlos Ghosn correu mundo e a Renault, desesperada por um gestor de qualidade superior, decidiu avançar para a contratação deste brasileiro como vice-presidente responsável pelas compras, pesquisa avançada, engenharia e desenvolvimento, divisão de motores e produção. Ficou encarregue, também, da operação da Renault na América do Sul. O seu trabalho foi elogiado por todos e, qual toque de Midas, fez uma reestruturação do edifício da casa francesa de alto a baixo e em 12 meses devolveu os lucros á Renault.

 

Em 1999, juntou a Renault à Nissan e o “gaijin” (em japonês significa estrangeiro, não japonês) usou a marca francesa para comprar 36.8% das ações da Nissan. Quando o negócio foi feito, a Nissan devia mais de 20 mil milhões de dólares e apenas três dos 26 modelos que vendia, geravam lucro. Todos consideravam a Nissan morta e esta compra levantou muitos sobre avisos.

 

A verdade é que o plano “Nissan Revival Plan” anunciado em outubro de 1999, dizia qud a Nissan voltaria aos lucros logo no ano 2000. Alvo de risota e chacota de muitos, a verdade é que o ousado plano – que previa, ainda, um lucro operacional de 4,5% no final de 2002 e 50% de redução da dívida – deu certo. À custa, é verdade, de muito corte, entre eles, 21 mil postos de trabalho, a maioria deles no Japão, o fecho de cinco fábricas japonesas e a redução brutal dos fornecedores e a venda de negócios não rentáveis ou fora do “core business” da Nissan, como por exemplo, a divisão aeroespacial.

 

Colocando a cabeça a prêmio, Carlos Ghosn conseguiu a aprovação do seu plano depois de prometer que se demitiria se os objetivos não fossem alcançados. O quarto líder não japonês de uma empresa do país do Sol Nascente (Mark Fields, Henry Wallace e James Milner foram escolhidos pela Ford para tomar conta da Mazda no final dos anos 90), desafio todo o tradicionalismo japonês acabando com mordomias, promoções baseadas na idade e não na competência (a honra aos idosos é algo muito querido no Japão) e, também, com um dos maiores problemas da Nissan, o sistema “Keiretsu” (espécie de rede entrelaçada de fornecedores de peças com participações cruzadas na Nissan). Mas fez mais! Mudou a língua oficial da empresa de japonês para inglês, terminou todos os contratos com os tais fornecedores “keiretsu” acendendo a ira dos japoneses e trouxe para Tóquio gestores europeus e norte americanos, desenhando uma estratégia global para a Nissan.

 

Cumpriu Carlos Ghosn os objetivos do seu ousado programa? A Nissan, um ano depois, mostrou lucros consolidados, depois de impostos, de 2,7 mil milhões de dólares, face ao prejuízo consolidado de 6,46 mil milhões de dólares do ano anterior, 1999, levando apenas um ano a devolver lucros à marca japonesa. No final do plano de três anos, a Nissan era um dos mais rentáveis construtores mundiais com margem de lucro operacional acima dos 9%. E antes de chegar a março de 2002, fim do ano fiscal, segundo ano do programa, todos os objetivos foram alcançados.

 

Mais recentemente, há dois anos, Ghosn mostrou o seu lado de predador ao adquirir uma posição dominante de 34% na Mitsubishi, depois desta estar muito fragilizada devido a meses de escândalos ligados a falsas informações sobre consumos e emissões poluentes dos seus veículos. Com esta aquisição, a Aliança Renault Nissan Mitsubishi tornou-se no quarto maior grupo automóvel mundial, atrás da Toyota, Volkswagen e General Motors.

 

Culto, inteligente, capaz de agregar múltiplas culturas (fala fluentemente Português, Francês, Inglês e Árabe tendo mais dificuldade com o japonês), Carlos Ghosn é um dos mais respeitados gestores mundiais. Mas há muito que estava envolvido em polêmicas e, curiosamente, os seus vencimentos sempre geraram discussão. Por isso a pergunta: estamos a assistir à queda de um anjo, ou à “morte” de um demônio?

 

A sua prisão esta manhã (madrugada em Lisboa) mergulhou a Aliança numa espiral negativa e a Renault, em particular, está num momento difícil com a perda de 13% do seu valor em bolsa. À boa maneira japonesa, a paciência foi decisiva para que Carlos Ghosn tenha sido “apunhalado” pelo monstro que criou. Foi a Nissan que denunciou tudo ao Ministério Público japonês, depois de ter encetado um inquérito interno gerado por um grande número de queixas anônimas. Foi o “monstro” que Carlos Ghosn criou a partir de 1999 – cujos responsáveis japoneses mais tradicionais nunca viram com bons olhos a compra da Nissan pela Renault e muito menos ter um “gaijin” como maestro – que agora o leva para o cadafalso, acusando de forma direta, de ter enganado o fisco japonês ao declarar vencimentos muito abaixo dos reais durante cinco anos e a utilização de dinheiro da empresa em proveito próprio.

 

Mas a onda de choque está lançando mais estilhaços na França, estes sentem-se de forma violenta e abanam a Renault de alto a baixo. A questão dos vencimentos de Carlos Ghosn surgia por tudo e por nada, tendo o gestor brasileiro aceite um corte de 30% na sua remuneração, paga pela Renault, depois de muita pressão do Estado francês, escandalizado com os valores auferidos por um funcionário de uma empresa detida pelo Estado com 15% do capital.

Os choques com Emanuel Macron e com o governo francês fizeram Ghosn ceder em algumas situações, como a eleição de um COO (o número 2 de uma hierarquia de empresa) para a Renault (Thierry Boloré). Aceitou, aqui por pressão japonesa, retirar-se CEO da Nissan e colocar no seu lugar um japonês decorativo, Hiroto Saikawa. E estava a preparar-se para eleger um delfim que tomasse conta da Renault, condição indispensável para que o seu mandato á frente da Renault fosse continuado. Claro que a sua prisão precipitou os seus planos e se a Nissan já anunciou que vai despedir o seu CEO, a Aliança Renault Nissan Mitsubishi está… a recuperar do choque.

Sobretudo para a Renault este é um duro golpe pois a marca francesa tem o seu modelo econômico assente na aliança com a Nissan. E foram os lucros e o dinheiro da Nissan que permitiu á Renault escapar ilesa á grande crise de 2008. E a interação entre a Renault e a Nissan é cada vez mais intensa com plataformas, motores, compras, fornecedores, enfim, quase tudo é partilhado entre as duas marcas.

Os defensores da independência da Nissan esfregam as mãos de contentes com esta detenção de Carlos Ghosn, mas uma separação das duas marcas iria desmoronar um grupo, hoje sólido.

Porém, os japoneses tiraram da gaveta esta vontade de separação, desconfortáveis com o jugo da Renault. Aceitam ser fiéis a Carlos Ghosn, pois foi ele quem os salvou ao convencer a marca francesa a comprar a Nissan, mas descartam a Renault, pois foram os seus resultados que salvaram a casa francesa durante a crise de 2008. Já antes tinha havido um “frisson” entre Nissan e Renault, quando o Estado francês, acionista da casa de Billancourt, aumentou de forma clara o seu peso na estrutura acionista da Renault para impor o direito de voto nas assembleias gerais. A Nissan avisou que, segundo os seus princípios, era inconcebível uma empresa japonesa ser controlada por um Estado estrangeiro. Um “gaijin” como Ghosn…

Para piorar a situação de paz mais ou menos podre dentro da Aliança Renault Nissan Mitsubishi, a aquisição da Mitsubishi não foi encarada de forma positiva pelos responsáveis e acionistas da Renault, pois o peso japonês na Aliança é profundamente desfavorável aos franceses. Colada com cuspo, esta Aliança está prestes a desmoronar-se com perigos evidentes para todos, mas especialmente para a Renault. Se a Nissan já anunciou o despedimento de Ghosn, esta situação de detenção do CEO da Renault e da Aliança, trará para cima da mesa a necessidade de alterar a direção do grupo. E os japoneses, respaldados pela sua superioridade face aos franceses, vão querer algum dos seus como figura de proa da Aliança.

Mas, inevitavelmente, vão esbarrar na intransigência do Estado francês que irá lembrar que, apesar de tudo, a Renault é proprietária de 44% da Nissan e que a Nissan só detém 14% da Renault e, por isso, o novo “patrão” da Aliança deverá ser escolhido pela marca francesa.

A imprensa francesa diz que poderá haver uma solução: chama-se Didier Leroy, um francês que faz parte do comité executivo da Toyota, conhece muito bem o setor automóvel japonês, tem experiência de trabalho com os japoneses e foi colaborador de… Carlos Ghosn. Diz-se que poderá ser o triunfo da Renault para acabar com uma possível guerra de sucessão que não beneficiaria ninguém.

Até porque a conjuntura não está fácil: o mercado norte americano subiu tanto que vai estagnar ou mesmo recuar um pouco, na China os crescimentos de duplo dígito já são coisa do passado e está, mesmo, em queda e, na Europa, os valores de vendas só agora estão a chegar aos níveis antes da crise. A necessidade de lidar com os cada vez mais draconianos níveis de emissões poluentes, obriga a violentos investimentos em pesquisa e desenvolvimento que podem criar forte erosão na saúde financeira do mais robusto grupo. Por tudo isto, a solução pós-Ghosn terá de ser bem ponderada e, sobretudo, feita de forma célere e com cedências de todos. O orgulho que Carlos Ghosn sempre exibiu, algumas vezes de forma menos digna, de ter criado uma aliança industrial poderosa que é o quarto grupo mundial, pode agora transformar-se numa nódoa caso as partes não se entendam e o brasileiro seja o culpado de transformar os cerca de 470 mil funcionários da Aliança num enorme problema social.

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